Anunciamos a Outra Campanha 2020!
A Outra Campanha traz uma visão de política distante dos partidos e da esquerda institucional que, financiados pelos ricos e pelo próprio Estado, inundam as ruas e a mídia com suas propagandas e a noção de que somente entrando para as instituições estatais poderemos promover mudanças profundas.
Muitos dos maiores movimentos e revoluções em andamento em nossos tempos partilham da ideia de que é mais eficiente mudar o sistema de forma direta, popular, auto-organizada e sem os instrumentos de gestão e repressão do Estado. Somente a prática e o debate que considere essas experiências poderão mostrar às pessoas que existe política para além do voto e da democracia representativa burguesa.
Por isso, os coletivos Antimídia e Facção Fictícia apresentam “A Era da Democracia”, um vídeo e um artigo pensado para incitar o debate sobre as origens do voto democrático, seus limites e propostas para superá-lo e construir um mundo realmente igualitário e livre — um mundo onde caibam muitos mundos!
Fazemos coro às palavras do Subcomandante Moisés, que nos lembra que “não lhe dizemos que vote, tampouco lhe dizemos que não vote. Simplesmente lhe dizemos que se organize”.
A era da Democracia
Vivemos na era da democracia. Uma forma de governo em que o povo escolhe, através do voto, representantes para ocupar cargos no Estado, criar leis e aplicá-las em nome da população.
Desde a Revolução Francesa, no fim do século 18, revoltas explodiram nos cinco continentes para tirar o controle do Estado da mãos dos reis e imperadores e instaurar governos onde qualquer pessoa pudesse concorrer a cargos eletivos e representar sua comunidade, sua classe, sua crença ou seu povo.
Mas ainda vivemos em uma sociedade tão desigual e excludente como as ditaduras e impérios que a antecederam. O fim do colonialismo, da escravidão formal, a conquista do direito das mulheres de votar, trabalhar e ocupar a política não bastou para acabar com a desigualdade de classes, nem com o racismo ou o patriarcado. O que vimos foi apenas gente da nossa cor ou do nosso gênero praticando as mesmas políticas que excluem maior parte da população, mantendo o abismo entre as pessoas ricas e pobres.
O que falta, então, para chegarmos a uma sociedade realmente livre e igualitária? Podemos começar nos perguntando o que herdamos das monarquias e impérios e está presente até hoje nos Estados democráticos.
Mesmo após as revoluções socialistas ao redor do mundo e o fim das ditaduras civil-militares na América Latina os novos governos mantiveram as instituições criadas por impérios para dominar e oprimir os povos: exércitos, polícia, prisões, fronteiras, sistemas jurídicos e a divisão social entre governantes e governados, trabalhadoras e administradoras. Essas instituições foram criadas para proteger os privilégios da classe dominante, na época, a nobreza. Hoje protegem elites financeiras ou a cúpula de um partido. Quase todo movimento, eleitoral ou revolucionário, que tentou tomar controle do Estado, mais cedo ou mais tarde reproduziu as mesmas dinâmicas de dominação e opressão.
Como esperar que haja igualdade se a sociedade está sempre dividida entre quem manda e quem obedece? Como esperar que quem controla instituições como polícias e prisões trabalhe por justiça e para o bem comum?
Votar em representantes é a única ou a melhor ferramenta para ter nossas vozes ouvidas e nossas necessidades atendidas em sociedade? Se eleições não representam nem dão voz à esmagadora maioria das pessoas, o que deu errado?
Os fracassos da Democracia – A Ilusão da Participação e as Falsas Promessa de Igualdade
Regimes absolutistas são instáveis. O tirano que governa somente pela força, de acordo apenas com seus desejos e humores facilmente desperta a revolta das classes oprimidas e disputas internas entre membros da elite.
Quando os povos derrubaram as monarquias, novas elites, como a burguesia, articularam-se para controlar as novas formas de governar. Descobriram, então, que o voto é uma ótima ferramenta para pacificar a revolta de grupos que se sentem excluídos dos processos políticos: “em vez de se rebelar para derrubar um rei, por que não esperar mais quatro anos e eleger um novo presidente?”
O poder de decidir continua na mão de poucas pessoas, mas agora ninguém pode dizer que “as pessoas não são ouvidas”. O voto se tornou uma ferramenta para legitimar governos, enquanto transfere nossa capacidade de agir e mudar a realidade para políticos profissionais, limitando a participação popular a uma única pergunta: quem vai mandar? Todas as outras questões serão decididas apenas por quem for eleita para isso. E se queremos nos candidatar às eleições, precisamos de dinheiro, influência, alianças com diferentes partidos e vastos recursos para ter alguma chance de ganhar.
Em resumo, o voto é um mecanismo que limita a participação da maioria enquanto permite que uma minoria venda sua imagem como empresas vendem seus produtos. Mesmo que as chamadas formas democráticas pressuponham a alternância de poder, na prática vemos como resultado muitos políticos passando décadas como parlamentares, monopolizando cargos por gerações, com membros das mesmas famílias (Sarneys, Magalhães, Suplicys, Neves, Bolsonaros, etc.) revezando nos plenários, governo federal ou dos estados. Suas atividades são unicamente governar, sendo assim, é difícil pensar que podem representar alguém além de sua própria classe de governantes.
Escolher Sem Liberdade
Às vezes surge um candidato com um discurso que resume o que as pessoas vinham sentindo e dizendo há muito tempo. Parece que ele vem de fora desse mundo da política e que é realmente um de nós.
Ao criticar duramente o sistema dentro da sua própria lógica, ele subitamente convence as pessoas de que o sistema pode ser reformado e funcionar de verdade, com justiça e igualdade, “se as pessoas certas estiverem no poder”. Assim, muito da energia que poderia ser usada para combater o sistema como um todo e promover mudanças diretas acaba sendo voltada para apoiar outro candidato que inevitavelmente vai nos decepcionar. E ao final, a estrutura estatal sairá com mais legitimidade e nós com menos prática e experiência em ação direta e auto-organização.
Essas candidaturas “alternativas” recebem tanta atenção porque são moldadas nos sentimentos populares. Muitas vezes elas estão explicitamente tentando subir ao topo se escorando nos esforços dos movimentos sociais e de base, cooptando suas lutas. Mas tais candidatos nunca atingem a raiz dos problemas e se limitam a maquiar problemas estruturais. Mudam o discurso mas são sempre meros gestores da política, da economia e dos aparelhos repressivos como qualquer outro que veio antes dele.
Sendo assim, deveríamos investir nossa energia em apoiando esses movimentos ou em construir mobilizações que criem pressão suficiente e façam ceder às nossas demandas e necessidades mais radicais?
Em outros momentos, nos aterrorizamos com a possibilidade do país ser governado pelo pior candidato possível: “E se ele chegar ao poder?! Pense como poderia ser ainda pior!”. Mas o real problema é a concentração de tanto poder em instituições como o governo. Não fosse por isso, não teríamos tanto medo de que indivíduos autoritários, fascistas e racistas tomassem o poder sempre que há uma eleição. Enquanto existirem Estados e outras instituições que monopolizam poder e legitimidade, sempre haverá risco de que fascistas tomem o seu controle e ameacem nossa liberdade e nossas vidas por uma via legal. Mais do que nos desesperar para tentar colocar alguém que “nos representa” no topo dessas instituições, precisamos construir formas de poder distribuído e descentralizado que tornem essas instituições obsoletas e impotentes.
A democracia é um jogo, onde os resultados podem mudar, mas as regras continuarão as mesmas. Como num videogame de mundo aberto, que cria a ilusão que temos liberdade para fazermos nossas próprias escolhas, quando na verdade as únicas escolhas possíveis são aquelas criadas por quem programou o jogo. É claro que existem diferenças entre Lula e Bolsonaro, entre Obama e Trump, mas as mudanças feitas por um governo dentro da democracia, mesmo que com competência e boas intenções, são muito restritas e podem ser facilmente desfeitas pelo seu sucessor.
Por isso o mais importante é investir nossa energia em caminhos mais efetivos nos opondo ao poder do Estado e todas as instituições que concentram o poder que é arrancado de nós. Precisamos de ferramentas mais eficientes para evitar que tiranos controlem o Estado. Precisamos garantir que quem não consegue vencer eleições, tenha sua existência e suas necessidades protegidas. Quantos séculos mais serão necessários para que concordemos que a democracia representativa não pode cumprir suas promessas?
O que pode ser “mais democrático” que votar?
Se o voto e a democracia representativa servem apenas para nos manter sob controle das novas elites na modernidade, o que pode existir além do voto e das eleições? Como aplicar as mudanças que queremos ver no mundo sem esperar que governos e os ricos façam em nosso nome – ou nos obriguem a fazer? O voto é como um emprego: a única coisa pior do que ser obrigada a viver com um, é ser ter que viver sem um. Portanto, a simples oposição entre votar ou não votar é insuficiente. É preciso reformular a questão.
Algumas pessoas vão dizer que é preciso boicotar as eleições. Outras dirão que quem não vota ou vota nulo não pode reclamar e ainda acusarão essas pessoas de ter permitido que fascistas como Bolsonaro chegassem ao poder. Mas independente de votarmos ou não, precisamos de formas de distribuir o poder, a capacidade de tomar decisões e aplicá-las em nossas vidas sem esperar por ordens ou permissões.
A realidade nos mostra que participar da política eleitoral significa abrir mão de construir uma força coletiva para entregar ainda mais poder e legitimidade às instituições políticas que amanhã podem estar nas mãos de ditadores e autoritários. Seja por um golpe de Estado ou através de eleições democráticas como fizeram Jair Bolsonaro, Donald Trump, Boris Johnson, Vladimir Putin, Viktor Orbán, Narendra Modi e tantos outros.
Portanto, ao invés de apenas pedir para alguém votar ou não, que tal experimentarmos formas de ação política que façam diferença concreta e imediata para nós e nossas comunidades, para que possamos agir diretamente sobre as questões importantes para nossas próprias vidas.
Existem diversas ferramentas e caminhos que podemos buscar que, em vez de tirar o poder de nossas mãos, empodera a nós e a nossas comunidades, como a ação direta, a tomada de decisões por consenso, a busca pela autonomia, a construção de federações e redes interdependentes, formas transformativas de abordar conflitos, a criação de espaços de encontro e troca e diversas outras possibilidades que fomentam a descentralização, a horizontalidade, a solidariedade, o apoio mútuo e um mundo mais igual, justo e livre.
Abaixo, debatemos práticas que podem ser melhores e mais eficientes que votar e confiar em políticos e líderes:
1. Consenso
A tomada de decisões baseada no consenso já é praticada pelo mundo todo, de comunidades indígenas no Brasil a movimentos de ocupação na Alemanha, ou cooperativas de agricultores na Venezuela. Em contraste à democracia representativa, os participantes fazem parte do processo de tomada de decisões de forma contínua e exercem verdadeiro controle sobre sua vida diária. Ao contrário da democracia governada pela maioria, o consenso valoriza igualmente as necessidades e preocupações de cada indivíduo; se uma pessoa está infeliz com uma resolução, é da responsabilidade de todos encontrar uma nova solução que seja aceitável por todos.
A tomada de decisões baseada no consenso não exige que uma pessoa aceite o poder de outros sobre ela, entretanto exige que todo mundo considere as necessidades de todos; o que ela perde em eficiência compensa em liberdade e transparência. Em vez de pedir que as pessoas aceitem líderes ou encontrem uma causa comum se homogeneizando, o processo consensual integra todos em um conjunto funcional enquanto permite que cada um mantenha a sua autonomia.
No entanto, o consenso não deve ser visto como algo inegociável, e votar para tomar decisões pontuais pode ser sempre uma opção para grupos ou assembleias de grupos que precisam resolver grandes questões de forma imediata.
Ter o consenso como valor absoluto em todas as situações pode ser arriscado e ineficiente, pois basta um indivíduo para barrar qualquer tomada de decisão. Flexibilidade entre consenso e voto em assembleia para cada decisão pode ser uma alternativa eficiente e segura.
2. Autonomia
Para ser livre, você deve ter controle sobre aquilo que está imediatamente ao seu redor e sobre as necessidades básicas da sua vida. Ninguém está mais qualificado que você para decidir como você deve viver; ninguém pode ser capaz de votar no que você deve fazer com o seu tempo e potencial a menos que você os convide. Alegar esses privilégios para si e respeitá-los nos outros é cultivar a autonomia.
A autonomia não deve ser confundida com a, assim chamada, independência, na verdade, ninguém é independente, uma vez que nossas vidas dependem umas das outras.* A glamourização da autossuficiência numa sociedade competitiva é um modo enganoso de acusar aqueles que se recusam a explorar os outros de serem responsáveis pela sua própria pobreza; e como tal, é um dos obstáculos mais significativos para se construir uma comunidade†. Em contraste a essa miragem Ocidental, a autonomia oferece uma livre interdependência entre pessoas que compartilham consenso.
Autonomia é a antítese da burocracia. Não há nada mais eficiente que pessoas agindo por suas próprias iniciativas como acharem necessário, e nada é mais ineficiente que tentar ditar as ações de todo mundo— isto é, a menos que seu objetivo fundamental seja controlar outras pessoas. A coordenação de cima para baixo só é necessária quando as pessoas devem ser forçadas a fazer algo que elas nunca fariam de seu próprio acordo; da mesma forma, uniformidade obrigatória, por mais horizontal que seja sua imposição, só pode fortalecer um grupo ao enfraquecer os indivíduos que o compõem. O consenso pode ser tão repressivo quanto a democracia a menos que os participantes retenham sua autonomia.
Indivíduos autônomos podem cooperar sem compartilhar um plano idêntico, enquanto todos se beneficiarem da participação dos outros. Logo, grupos que cooperam podem evitar conflitos e contradições, assim como o fazemos individualmente, e ainda fortalecer os participantes. Vamos deixar o ato de marchar sob uma bandeira única para os militares.
Finalmente, autonomia requer autodefesa. Grupos autônomos têm interesse em se defender da invasão daqueles que não reconhecemos seu direito à autodeterminação, e em expandir o território da autonomia e do consenso ao fazerem tudo em seu poder para destruir estruturas coercivas.
3. Federações sem hierarquia
Grupos autônomos independentes podem trabalhar juntos em federações sem que qualquer um deles detenha a autoridade. Tal estrutura soa utópica, mas, na verdade, pode ser muito prática e eficiente. O correio e as viagens de trem internacionais funcionam nesse sistema, par a citar dois exemplos: enquanto os sistemas individuais de transporte e correio são internamente hierárquicos, eles todos cooperam juntos para transportar correspondências ou passageiros de um país a outro sem que uma autoridade máxima seja necessária em qualquer estágio do processo. De forma similar, indivíduos que não podem concordar suficientemente para trabalhar juntos dentro de um coletivo ainda podem coexistir em grupos separados. Para que isto funcione a longo prazo, é claro, é preciso alimentar, gota a gota, os valores de cooperação, consideração e tolerância nas gerações futuras — mas isso é exatamente o que estamos propondo, e dificilmente conseguiremos executar esta tarefa pior do que os partidários do capitalismo e da hierarquia têm feito.
4. Ação Direta
A autonomia significa pessoas e grupos agindo por vontade e capacidade próprias: que em vez de esperar que solicitações passem por canais estabelecidos somente para acabar em burocracias e negociações intermináveis, você estabeleça seus próprios canais. Se você quer que os famintos tenham comida para comer, não apenas dê dinheiro a uma organização de caridade burocrática — descubra onde há comida sendo desperdiçada, recolha-a e compartilhe. Se você quer habitações acessíveis, não espere que a câmara municipal aprove uma lei — isso levará anos, enquanto pessoas dormem nas ruas todas as noites; ocupe prédios abandonados, abra-os para o público, e organize grupos para defendê-los quando os capangas dos proprietários ausentes aparecerem. Se você quer que as corporações tenham menos poder, não peça aos políticos por eles comprados que imponham limites a seus próprios mestres — tome esse poder para si próprio. Não compre seus produtos, não trabalhe para eles, sabote os seus anúncios publicitários e escritórios, impeça-os de realizar seus encontros e sua mercadoria de ser entregue. Eles também usam táticas similares para exercer poder sobre você — e só parece válido porque eles compraram as leis e os valores da nossa sociedade muito antes de você nascer.
Não espere por permissão ou liderança de alguma autoridade de fora, não implore para que algum poder superior organize sua vida para você. Tome a iniciativa com sua comunidade!
Conclusão: Elejam quem quiser, seremos ingovernáveis!
Sociedades sempre buscam formas mais eficientes de se organizar. O descontentamento popular é uma força contínua de mudanças. De fato, a Democracia é uma das melhores e mais eficientes formas de governo que existiu, se pensarmos que ela permite que tenhamos alguma voz e que, em tese, qualquer pessoa possa participar do governo e ser presidente mesmo sem ser “escolhida por deus” ou ter laços de sangue com uma dinastia no poder por séculos. No entanto, ao longo dos últimos 200 anos, a prática nos mostrou que mesmo governos democráticos, eleitos pelo voto popular, frequentemente acabam se aliando às classes dominantes para conseguirem governar, conservando profundas desigualdades políticas e econômicas.
Portanto, nossa busca não pode terminar aqui. Precisamos olhar para a história das revoluções sociais ao redor do mundo e em outras sociedades e culturas que vivem e se organizam de uma forma diferente, mais horizontal e que garantam de fato liberdade e autonomia, contra a desigualdade e a dominação.
Votar em uma classe de representantes e esperar que ela resolva nossos problemas é aceitar uma política de passividade. Se organizar entre comunidades e redes de várias comunidades, em apoio mútuo e partindo da ação direta é uma política para quem não quer apenas assistir e esperar, mas tomar o controle de suas próprias vidas e agir em uma sociedade por justiça e igualdade. Se toda energia e recursos desperdiçados em publicidade de campanhas políticas que sequer vencem eleições fossem usadas para fortalecer e atender comunidades, estaríamos numa situação muito melhor. Porque não testar algo radicalmente diferente desde agora?
Se para muitas pessoas a Democracia burguesa e o Capitalismo parecem algo invencível e do qual não podemos nos livrar, vale lembrar que os impérios, a escravidão legalizada e o direito divino dos reis também pareciam invencíveis até a véspera de sua queda.